1 de mai. de 2010

                                                                                                                      Chagall

TABACARIA (15-1-1928 )
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,  
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
 
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
 
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
 
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas  
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, 

e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
 
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, 

como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua,
como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, 

como coisa real por dentro.(...)

(Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! (...) 

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