CLARICE LISPECTOR E OS INTELECTUAIS NO ESTADO NOVO: ITINERÁRIOS DE UMA APRENDIZAGEM
Como os demais intelectuais de sua geração, a jovem Clarice Lispector, quando iniciou sua obra literária, foi marcada pelos acontecimentos que abalaram o Brasil e o mundo nos anos de 1939 a 1945. Nesse período, ela, além de publicar seus primeiros escritos, estudou Direito na Universidade do Brasil, trabalhou na redação da Agência de Notícias do DIP, o poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda do governo e depois no jornal A Noite.
Esses anos coincidem exatamente com os tempos sombrios da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo, período autoritário na história brasileira sob o comando de Getúlio Vargas. Esse contexto histórico foi marcado também por intenso debate sobre projetos para o Brasil que influenciavam a vida intelectual de então e que se refletiram no cotidiano acadêmico e profissional da autora, envolvendo também os círculos com os quais convivia.
A maioria dos intelectuais de então, na condição de funcionários públicos e/ou beneficiários do mecenato oficial, dependia diretamente do governo e defendia seus interesses reforçando as “panelas” da burocracia as quais estavam vinculados. O governo de Getúlio Vargas soube muito bem tirar proveito da participação dos intelectuais de diversos matizes políticos e ideológicos nas diversas funções que desempenhavam em seu projeto de cultura política, usado para justificar o processo de modernização conservadora que implementava no país. Tal projeto foi capaz de unir antigas elites oligárquicas agora travestidas de modernas e industriais, além do capital multinacional, especialmente norte-americano, e obter o apoio das amplas massas populares conquistadas especialmente com a outorga de direitos sociais.
A participação diferenciada dos muitos intelectuais que se envolveram com esse projeto de construção nacional, seja por concordância ideológica com o regime, por crença no seu papel de protagonista na montagem de um Estado de Bem Estar Social ou por mera necessidade de sobreviver num cenário ainda de poucas oportunidades de trabalho, teve consequências duradouras na construção de uma sociedade civil autônoma no Brasil. Nesse sentido, é impossível omitir o papel dos intelectuais no Brasil de ontem, mas principalmente no país que ainda hoje vive o descompasso entre ser moderno e ostentar estatísticas que denunciam a maior desigualdade social do mundo. A tradição de alheamento da maioria da população do mundo público continua cobrando seu tributo e uma sombra parece projetada sobre a cidadania, confundindo direitos com ajuda, público com privado, interesses com virtudes políticas, numa história que continua “sem autores e responsabilidades” (TELLES, 199, p. 103).
Apesar de também trabalhar para o governo Vargas, Clarice Lispector colocou desde os seus primeiros escritos, questionamentos explícitos sobre os modelos hegemônicos de representação, da identidade, da cultura e das relações sociais e preferiu aventurar-se pela errância de personagens em busca de sua autoidentidade, elegendo temáticas relacionadas à consciência individual e aos estados subjetivos no qual a fragmentação dos episódios traduzia um olhar sobre a realidade tributário da ficção moderna. Essa opção foi estranhamente lida por parte da crítica literária como descolada de vínculos com a realidade, do compromisso social ou engajamento político e contribuiu com generalizações como a do predomínio de uma escrita intimista ou psicológica em relação às suas obras. Clarice chegou mesmo a ser considerada uma “alienada” por alguns críticos.
Porém, ao enfrentar a tradição autoritária de mando e obediência na opção principal que fez em sua obra por narrar histórias de mulheres e a outros seres desvalorizados e invisíveis para a história oficial da nação imaginada por suas elites, Clarice escancarou o peso do esquecimento que condena as maiorias ao silêncio e às múltiplas exclusões, sem direitos e sem memória.
Se o poder de lembrar foi responsável pela construção da forte tradição que considera a nação como a forma mais acabada de um grupo e a memória nacional, a forma mais completa de uma memória coletiva, a escrita de Clarice subverteu essa lógica expondo indivíduos e grupos excluídos, marginalizados e considerados como minorias, revelando verdadeiras “memórias subterrâneas” que, como parte das culturas dominadas, opõem-se à "memória oficial", no caso, à memória nacional (POLLAK, 1989). Fez isso promovendo uma verdadeira ruptura temática e formal em relação aos padrões literários vigentes. Essa experiência foi realizada no seu primeiro romance com Joana, personagem de Perto do coração selvagem (1943), que aprende ao longo de seu itinerário a voar para além das cadeias que a prendiam à escassa realidade reservada às mulheres.
Diferentemente do sentido que guiou a modernização conservadora no Brasil, a obra de Clarice desafiou o domínio hegemônico contido no conceito de “progresso quantitativo” e a ele opôs o “progresso qualitativo” do indivíduo, sua aprendizagem, para usar uma palavra cara à autora (SANTIAGO, 1999). O desenvolvimento racional e seu aprimoramento técnico perdem para o registro das indagações íntimas dos humanos sob o impacto das suas relações com a realidade sensível. Essa é a aprendizagem que propõe aos seus leitores, que experimentam outro tipo de conhecimento e são capazes de ir além dos sentidos imediatos oferecidos pelo presente para acompanhá-la na viagem ao selvagem coração da vida.
Referências:
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989. p. 3-15.
SANTIAGO, Silviano. A Aula inaugural de Clarice. in: MIRANDA, Wander Melo (org.) Narrativas da Modernidade . Belo Horizonte, Autêntica, 1999
TELLES, Vera da Silva. Direitos Sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
(Margareth Cordeiro Franklin - publicado no jornal Estado de Minas em 07/11/2009)
Como os demais intelectuais de sua geração, a jovem Clarice Lispector, quando iniciou sua obra literária, foi marcada pelos acontecimentos que abalaram o Brasil e o mundo nos anos de 1939 a 1945. Nesse período, ela, além de publicar seus primeiros escritos, estudou Direito na Universidade do Brasil, trabalhou na redação da Agência de Notícias do DIP, o poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda do governo e depois no jornal A Noite.
Esses anos coincidem exatamente com os tempos sombrios da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo, período autoritário na história brasileira sob o comando de Getúlio Vargas. Esse contexto histórico foi marcado também por intenso debate sobre projetos para o Brasil que influenciavam a vida intelectual de então e que se refletiram no cotidiano acadêmico e profissional da autora, envolvendo também os círculos com os quais convivia.
A maioria dos intelectuais de então, na condição de funcionários públicos e/ou beneficiários do mecenato oficial, dependia diretamente do governo e defendia seus interesses reforçando as “panelas” da burocracia as quais estavam vinculados. O governo de Getúlio Vargas soube muito bem tirar proveito da participação dos intelectuais de diversos matizes políticos e ideológicos nas diversas funções que desempenhavam em seu projeto de cultura política, usado para justificar o processo de modernização conservadora que implementava no país. Tal projeto foi capaz de unir antigas elites oligárquicas agora travestidas de modernas e industriais, além do capital multinacional, especialmente norte-americano, e obter o apoio das amplas massas populares conquistadas especialmente com a outorga de direitos sociais.
A participação diferenciada dos muitos intelectuais que se envolveram com esse projeto de construção nacional, seja por concordância ideológica com o regime, por crença no seu papel de protagonista na montagem de um Estado de Bem Estar Social ou por mera necessidade de sobreviver num cenário ainda de poucas oportunidades de trabalho, teve consequências duradouras na construção de uma sociedade civil autônoma no Brasil. Nesse sentido, é impossível omitir o papel dos intelectuais no Brasil de ontem, mas principalmente no país que ainda hoje vive o descompasso entre ser moderno e ostentar estatísticas que denunciam a maior desigualdade social do mundo. A tradição de alheamento da maioria da população do mundo público continua cobrando seu tributo e uma sombra parece projetada sobre a cidadania, confundindo direitos com ajuda, público com privado, interesses com virtudes políticas, numa história que continua “sem autores e responsabilidades” (TELLES, 199, p. 103).
Apesar de também trabalhar para o governo Vargas, Clarice Lispector colocou desde os seus primeiros escritos, questionamentos explícitos sobre os modelos hegemônicos de representação, da identidade, da cultura e das relações sociais e preferiu aventurar-se pela errância de personagens em busca de sua autoidentidade, elegendo temáticas relacionadas à consciência individual e aos estados subjetivos no qual a fragmentação dos episódios traduzia um olhar sobre a realidade tributário da ficção moderna. Essa opção foi estranhamente lida por parte da crítica literária como descolada de vínculos com a realidade, do compromisso social ou engajamento político e contribuiu com generalizações como a do predomínio de uma escrita intimista ou psicológica em relação às suas obras. Clarice chegou mesmo a ser considerada uma “alienada” por alguns críticos.
Porém, ao enfrentar a tradição autoritária de mando e obediência na opção principal que fez em sua obra por narrar histórias de mulheres e a outros seres desvalorizados e invisíveis para a história oficial da nação imaginada por suas elites, Clarice escancarou o peso do esquecimento que condena as maiorias ao silêncio e às múltiplas exclusões, sem direitos e sem memória.
Se o poder de lembrar foi responsável pela construção da forte tradição que considera a nação como a forma mais acabada de um grupo e a memória nacional, a forma mais completa de uma memória coletiva, a escrita de Clarice subverteu essa lógica expondo indivíduos e grupos excluídos, marginalizados e considerados como minorias, revelando verdadeiras “memórias subterrâneas” que, como parte das culturas dominadas, opõem-se à "memória oficial", no caso, à memória nacional (POLLAK, 1989). Fez isso promovendo uma verdadeira ruptura temática e formal em relação aos padrões literários vigentes. Essa experiência foi realizada no seu primeiro romance com Joana, personagem de Perto do coração selvagem (1943), que aprende ao longo de seu itinerário a voar para além das cadeias que a prendiam à escassa realidade reservada às mulheres.
Diferentemente do sentido que guiou a modernização conservadora no Brasil, a obra de Clarice desafiou o domínio hegemônico contido no conceito de “progresso quantitativo” e a ele opôs o “progresso qualitativo” do indivíduo, sua aprendizagem, para usar uma palavra cara à autora (SANTIAGO, 1999). O desenvolvimento racional e seu aprimoramento técnico perdem para o registro das indagações íntimas dos humanos sob o impacto das suas relações com a realidade sensível. Essa é a aprendizagem que propõe aos seus leitores, que experimentam outro tipo de conhecimento e são capazes de ir além dos sentidos imediatos oferecidos pelo presente para acompanhá-la na viagem ao selvagem coração da vida.
Referências:
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989. p. 3-15.
SANTIAGO, Silviano. A Aula inaugural de Clarice. in: MIRANDA, Wander Melo (org.) Narrativas da Modernidade . Belo Horizonte, Autêntica, 1999
TELLES, Vera da Silva. Direitos Sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
(Margareth Cordeiro Franklin - publicado no jornal Estado de Minas em 07/11/2009)
Alo margarida! O artigo é comprovado de historiadora! Estou curiosa sobre a "personalidade" Clarice como ser humano. Nas fotos ela tem um olhar... enigmático. O "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres" ocupa espaco na minha estante juntamente com o Guimaraes Rosa e Günther Grass, uau! Vou reler o "Uma Aprendizagem" para talvez defifrar a esfinge Clarice. O seu blog é uma finura, gostei das cores e da diagramacao.
ResponderExcluirAh, postei um outro comentário que infelizmente nao entrou.
Abracos quentes d`Este País, Alemanha que comeca a esfriar.
Solange
Um grande abraco.
olá, recentemente assisti na tv câmara de BH um programa de debate sobre o mesmo tema abordado aqui, gostaria de saber se você possue gravação do mesmo afim de disponibilizar para uso didático.
ResponderExcluiremail de contato é brunomadeinbrazil@gmail.com