29 de mai. de 2010

Azul

Em 1455, antes da América e do Brasil, Piero Della Francesca pintou esse fresco conhecido como Madona do Parto. A evidente alusão à representação teatral nessa obra é uma confirmação do cruzamento entre o sistema de imagens da cultura popular com a cultura letrada dos emergentes burgueses citadinos, base do realismo renascentista.

 Mas o que pouca gente sabe é que o azul ultramar  do vestido da Madona, uma tonalidade muito rara na época, era obtido a partir de um processo complicado do lápis lázuli extraído nas distantes cavernas das montanhas do Afeganistão que chegava à Itália nas caravanas da Rota da Seda.


Séculos depois devolvemos às madonas do Afeganistão muito mais que o azul ultramar industrializado pela civilização...


23 de mai. de 2010

O homem da multidão - Edgar Allan Poe

                                                                                                              Gustave Caillebotte
(...) Era esta uma das artérias principais da cidade e regorgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou e quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
http://www.modernidade.hpg.ig.com.br/multidao.htm
A uma passante 

Charles Baudelaire 

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daquí! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste

22 de mai. de 2010

Avós (1)

 
Minha avó Solaia morreu com 104 anos. Ela era uma Naknenuk.
Tenho orgulho de descender desse povo bonito e guerreiro, por isso mesmo alvo de uma implacável política de extermínio.Solaia era conhecedora dos segredos das matas, dos animais, plantas, fontes de água. Era senhora de um mundo selvagem  que fazia o inferno dos brancos
Grupos hostis aos propósitos civilizadores, como os indígenas do Vale do Mucuri e do Rio Doce, em Minas Gerais do século XVIII e XIX, mereceram a identidade de selvagens e foram considerados obstáculos que precisavam ser removidos para a marcha  da civilização. 
Mereceram também o nome genérico e ofensivo de Botocudos, dado pelos portugueses a diversos povos histórica e geneticamente heterogêneos do grupo lingüístico macro-jê (etnias Pojixá, Jiporok, Naknenuk, Nakrehé, Etwet, Krenak). 
A  guerra contra os Botocudos durou mais de um século . Para isto as tropas oficiais usaram desde cães treinados e alimentados com carne de indígenas até contaminação proposital com sarampo e varíola. 
Quando pegaram Solaia, quase uma menina, a guerra estava no fim. Já eram os tempos  dos ingleses e dos boatos sobre uma estrada de ferro no Vale.
As lembranças de Solaia são parte das  narrativas familiares, fábulas que desde criança eu ouvi contar. São também parte do acervo das memórias de um grupo excluído, marginalizado. Minorias,  que com suas “memórias subterrâneas”, opõem-se à "memória oficial"(POLLAK:1989). 
Solaia e os seus sabiam que um território é  o chão mais a identidade  (Milton Santos:1999,8). Por isso valia a pena morrer lutando. Podem ter perdido a terra, a floresta, a vida, mas vamos sempre lembrar do seu desejo de liberdade. 
(Fotos: botocudos- Vale do Rio Doce - início do Século XX / desenhos: Debret e Rugendas- Sec. XIX)

21 de mai. de 2010

Nísia Floresta (1810-1885)




 Almeida Júnior
 No século XIX, com o advento dos romances e principalmente dos folhetins, algumas mulheres começaram a escrever e publicar, apesar das dificuldades de acesso à palavra escrita e à educação. Destaca-se na primeira metade do século XIX a presença de Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia de Faria Rocha, que escrevia em jornais do Rio de Janeiro e provocava polêmica por suas idéias abolicionistas e republicanas. Outras mulheres escritoras, como Ana de Barandas, Maria Josefa Barretos, Delfina Benigna da Cunha, Maria Firmina dos Reis, Julia de Albuquerque Sandy Aguiar, Narcisa Amália de Campos, figuram entre essas pioneiras que assumiram ao longo do século posições liberais e escreveram chocando a conservadora sociedade da época.
Porém, mesmo entre os escritores e intelectuais,  as manifestações favoráveis ao acesso à educação e à criação artística pelas mulheres não eram vistas com bons olhos e a maioria considerava que elas deveriam permanecer nos lugares tradicionais que lhes foram reservados, ou seja, entregues aos cuidados da casa e dos filhos. Quando muito deveriam pautar-se por escritos delicados e considerados femininos, sem agressividade ou preocupações políticas e sociais.
(Margareth Franklin, in  Clarice Lispector e os intelectuais no Estado Novo- 2009)

Trechos de obras de Nísia Floresta  
“Flutuando como barco sem rumo ao sabor do vento neste mar borrascoso que se chama mundo, a mulher foi até aqui conduzida segundo o egoísmo, o interesse pessoal, predominante nos homens de todas as nações.”  Em “Passeio ao Jardim de Luxemburgo”, 1857. 
“A escravidão (...) foi sancionada pelos mesmos homens, que tudo haviam sabido sacrificar para libertar-se do jugo de seus opressores, e assumirem a categoria de nação livre! Eles, que acabavam de conquistar a liberdade, não coravam de rodear-se de escravos!” Em “Páginas de uma Vida Obscura”, 1855.
“Certamente Deus criou as mulheres para um melhor fim, que para trabalhar em vão toda sua vida.” Em “Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens”, 1832.
“As dores morais do negro passam despercebidas nas habitações do branco.”  Em “Páginas de uma Vida Obscura”, 1855.
“Todos os brasileiros, qualquer que tenha sido o lugar de seu nascimento, têm iguais direitos à fruição dos bens distribuídos pelo seu governo, assim como à consideração e ao interesse de seus concidadãos.”  Em “Opúsculo Humanitário”, 1853.

16 de mai. de 2010

 Marc Chagall
Homens e mulheres: paralelas que talvez se encontrem no infinito.
Vídeo Sérgio Ribeiro
http://www.youtube.com/colibrifilmes

13 de mai. de 2010

Abolição ainda que tardia...


NAVIO NEGREIRO (texto integral)
Castro Alves

(...) 

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...  

 

10 de mai. de 2010

Tom Zé

Quem como eu teve a alegria de assistir o show do grande Tom Zé no FITO (08/05/2010) ganhou de presente um espetáculo de pura criatividade.
Tom Zé, representante da melhor parte da Tropicália, é um gênio alquimista capaz de fundir o sertão do Irerê ao mundo, atravessar décadas de obscuridade sem perder o bom humor e manter a certeza de que a arte é construída com trabalho duro e paixão. Tom Zé, operário de um lirismo que se manteve sempre contemporâneo, sempre vanguarda, desprezando as fórmulas fáceis do sucesso pelas incertezas da experimentação. Música que soube misturar-se aos ruídos, macunaímico regente de uma orquestra feita com sucatas, onomatopéias, idéias-força de consciência e cidadania, um banquinho, um violão e uma banda de rock.
A platéia adolescente em delírio provavelmente nem sabe que ele já passou dos setenta, tal o vigor com que pula e agita no palco o corpo miúdo, mestiço, mágico. Tom Zé,  seus múltiplos instrumentos e sua palavra, faca afiada de cangaceiro na mesmice sem graça da cultura de massas: criar é possível e preciso...

Fabricando Tom Zé  (trailer)

Tom Zé: Jimi, Renda-se

Tom Zé: Menina amanhã de manhã

6 de mai. de 2010

 A Via Campesina lança a cartilha "A ofensiva da direita para criminalizar
os movimentos sociais no Brasil" ,
que reúne textos e entrevistas sobre o processo de combate dos setores
conservadores aos trabalhadores organizados no país


Baixe a cartilha no endereço:
http://www.landaction.org/spip/spip.php?article485

5 de mai. de 2010

Dilmasia

                                                                                                                       Van Gogh
Tem modas políticas  novas nas geraes: Dilmasia.                                            
Inventando, mas com farta referência bibliográfica ou as réguas e compassos que temos, Dilmasia é uma mutação genética, cruzamento do ornitorrinco (Francisco de Oliveira ) com o tucanato. Ou pimenta/el nos olhos dos outros é refresco.
No requentado repertório das elites,  aprofunda-se o pacto conservador com o auxílio luxuoso da ideologia do maior partido de trabalhadores do mundo. O domínio absoluto do capital e todas as ideologias transformadas em mercadorias dificultam sonhar o futuro. Esses são os tempos sombrios e a melancolia que se abate sobre os que não perderam ainda a alma deve ser transformada em ação.
Porque  "palavra é ação, não concordais?" (C. Lispector: A hora da estrela)

3 de mai. de 2010

As pinturas de Clarice Lispector ao som de Agua Viva.(1973)

Acesse o texto integral:  Água Viva  

"Eu te digo: estou tentando captar o instante- já "



"A coragem de viver: deixo oculto o que preciso ser oculto e precisa irradiar-se em segredo. Calo-me."
" Meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo como a vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim."

"Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. Não se compreende música: ouve-se. Ouve- me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tão tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo para mim o que escrevo por que minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é minha quarta dimensão."
"Para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos instantes-já. Lê então o meu invento de pura vibração sem significado senão o de cada esfuziante sílaba, lê o que agora se segue: “com o correr dos séculos perdi o segredo do Egito, quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com ação energética dos elétrons, prótons, nêutrons, no fascínio que é a palavra e sua sombra.” Isso que te escrevi é um desenho eletrônico e não tem passado ou futuro: é simplesmente já"




"Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever. Esse é um modo de não haver defasagem entre o instante e eu: ajo no âmago do próprio instante."




"Uma vez olhei bem nos olhos de uma pantera e ela me olhou bem nos meus olhos. Transmutamo-nos. Aquele medo. Saí de lá toda ofuscada por dentro."

Concórdia revisitada por Gilson Fubá

Em BH, na década de 1920, bairros populares abrigavam os pretos e os pobres expulsos da cidade sitiada pela Avenida do Contorno. O Concórdia, tradicional reduto do samba, do congado, do candomblé e de outras manifestações da cultura negra, começou nesses anos. Terra dos maiorais, como nesse belo samba de Gilson Fubá, também disponível no blog:


                                                                                                                               BH, anos 20
                                                                        Bonde-Pedreira Prado Lopes
Concórdia  
Gilson Fubá

Concórdia, terra de maiorais
Zé Geraldo,Zé Lisboa, Arroz
e quantos mais
Lourdes Maria também lá brilhou, se lembra
Daquele samba lindo que Kalu ainda menino
Cantarolou

Salve, salve a Concórdia
Salve a rainha Cassimira
Salve a Rainha Conga que tão bem reinou
salve a Rainha Conga que tão bem reinou

Ô Odete costura com fios de luz
O estandarte cinquentennário
Que Margô conduz
Ê tia Cacilda vê
Quanta gente chegou
Trazendo a notícia
A notícia que o rádio anunciou

Olha lá o jornaleiro
Na esquina gritou
A manchete do dia - a Inconfidência ganhou
Conga é Cidadão Samba
O sapato do bamba sapateou
Conga é cidadão samba
O sapato do bamba sapateou
                                                 

Mestre Conga

1 de mai. de 2010


Acessem o link abaixo. Música da melhor qualidade, vídeos e muito mais.
Do amigo, Sirius Hu.

www.myspace.com/studiobabilonia2
                                                                                                                      Chagall

TABACARIA (15-1-1928 )
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,  
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
 
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
 
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
 
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas  
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, 

e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
 
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, 

como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua,
como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, 

como coisa real por dentro.(...)

(Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! (...) 

Libra Barcelona

O Libra Barcelona                                                                                                      Aleksandr Labas
fundeado à minha janela
espera a decisão de com ele
ir aos mares de sargaço e óleo.

Se na hora mais clara do dia
eu me agarrasse à sua quilha
descobriria outros portos
no coração ávido do mundo.

Mariheiros indiferentes
andam em faina pelo convés
e avistam os cotornos de cidades
debruçadas em sombras sobre as águas.

Acenam em várias línguas
aos prédios e telhados.
Aos barqueiros que passam
e às moças de lábios molhados
que esperam no porto por eles.

(Margareth Franklin - in Terra - 1998)