29 de jan. de 2010

Haiti em Arte ( diversos artistas)




Dubai derrete capitalista e sórdida
como o gelo no deserto da sua geografia.
Babilônia coberta com a vergonha
das muitas tribos que ergueram suas muralhas
de passaportes, aviões e hotéis .
A destruição de tudo que é sólido
ameaça de verdade e lança um bafo quente
de morte sobre os mares.
A fúria desperta dos Titãs
cairá sobre as tolas criaturas,
que sequer entendem como acionaram
a máquina do mundo.
Gaia vê seus filhos
perdidos nos labirintos de si mesmo,
prisioneiros dos desejos ilimitados pelas mercadorias
e eles atiram-se como cães famintos sobre sua pobre carne.
A vida não segue mais o curso dos rios
roubados para produzir a energia
que move a vida virtual
construída para justificar as horas.
A borboleta que bateu asas em Dubai atingiu o Haiti.
E a miséria explodiu em terremotos de corpos, todos negros.
Enquanto isso no alto da torre de poder, o presidente quase preto
ordenou o genocídio: foi preciso esperar três dias para mandar seus soldados ocuparem.
Tempo necessário para que os que estavam sob os escombros
morressem de sede.
Tempo necessário para não fingir socorro e virar ocupação militar.
Os ciborgs tomaram a cidade destruída
e apontam agora os olhos de rapina para as vizinhas Cuba e Venezuela
enquanto os lamentos dos que cantam seus mortos
evocam os deuses antigos
que parecem não ouvir mais vozes tão fracas:
"Reze pelo Haiti".       

25 de jan. de 2010

Cores do sertão

A luz transforma a cor em atração aos sentidos:.
impressão, sertão, imaginação.
Rio correndo
chuva, chuva.
Vôos de garças, gavião,
morros, longes, espaços que pegam a conversar com a alma do capiau,
E ele, bom de ouvido e de memória, guarda histórias  que gosta de contar em beira de fogo,
em rodas de café.
Verdade? Diz que foi...
E assim, de causo em caso ,
prossegue sertão.
Espantos e quebrantos
Cerrado, morada da mãe das águas e dos manancias,
Explode em cores e flores cumprindo o ciclo da vida:
o tempo é serpente que engole o próprio  rabo.

(Fotos: Margareth Franklin - janeiro 2010.
Cordisburgo - MG)



8 de jan. de 2010

A dor da gente não sai no jornal



Léo morreu fuzilado na Barragem Santa Lúcia na noite do ano novo. Tinha 18 anos e tinha ido passar as festas de fim de ano na casa da tia que mora por lá. Vivia com os pais e os irmãos em Ribeirão das Neves, era um menino querido por todos, não usava drogas, nunca cometeu qualquer ato violento e era um bom aluno.


Na noite em que morreu ele e suas primas foram dançar no baile funk da favela. Estava animado e cheio de planos para o ano que começava. Mas o pessoal do tráfico da parte de cima da Barragem confundiu Léo com o irmão mais novo do chefe do movimento da parte de baixo da favela. Em guerra há muito tempo a turma da Bolívia não pisa no alto da Barragem e vice-versa. Léo deu azar e os caras de cima não tardaram em mandar balas que acertaram a cabeça e o rosto do rapaz. Só bastante tempo depois viram que foi um vacilo, que eles pegaram o “alemão” errado.

Léo talvez vire estatística, talvez não, pois cada vez mais as estatísticas são peças de ficção e num ano eleitoral o importante é reafirmar a eficácia das medidas de segurança pública e de redução da criminalidade. Como é só um garoto anônimo certamente não haverá qualquer empenho em pegar seus assassinos. Afinal, morto no baile funk , para a polícia é só um marginal a menos. Além disso, quem vai se importar com um menino pobre baleado?

Os que viram como aconteceu vão ficar calados, pois essa é a lei da favela e manda o medo que o silêncio pesado abafe o fato até o esquecimento. Também são tantos os meninos que morrem por causa da guerra que eles não conseguem mesmo se lembrar de todos. Além da família, poucos vão chorar por ele.

Mas eu posso inventar que Léo não será nunca esquecido. Que do seu corpo menino plantado no chão do cemitério pobre de Ribeirão das Neves nascerá uma árvore enorme cujos galhos abrigarão ninhos de aves migratórias que sabem dos segredos do mundo inteiro. Quando elas chegarem, suas histórias serão ouvidas e quando partirem levarão os sonhos do rapaz para espalhar por terras distantes, como se fossem as sementes da árvore que plantarão por onde andarem. São sonhos de paz, cantam as aves.

Posso também inventar que na primavera a árvore se cobrirá de flores tão lindas que farão inveja às borboletas que moram por ali. E nas noites de frio, o vento que vem das montanhas passará de mansinho em volta da árvore, pois sabe que ali mora um deus menino que não deve ser incomodado em seu sono.

Porque certa vez eu ouvi que quando chegar o tempo em que tudo falhar e nem a história puder guardar a memória dos seres, ainda restará a poesia, como esperança última, como nossa última chance.

Que sua vida tão curta vire poesia, menino. Para não esquecermos nunca...
(publicado no jornal O Tempo de 12/01/2010)